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EM BUSCA DE HERÓIS NEGROS: A IMPORTÂNCIA DO QUILOMBO DOS PALMARES PARA UMA HISTORIOGRAFIA DO BRASIL

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    FEMEH
  • 1 de nov. de 2020
  • 10 min de leitura

Louyse Sousa Silva [1] RESUMO

O presente artigo propõe uma breve apresentação acerca do protagonismo político do Quilombo de Palmares, considerado a maior insurreição do período colonial do Brasil com duração de quase um século (1597-1695). O Quilombo se localizava na Serra da Barriga, na vila Santa Maria Madalena da Lagoa do Sul, capital da capitania de Pernambuco, atualmente compreendida como o estado de Alagoas e foi fundado por africanos fugidos da condição de escravizados. Apesar de sua magnitude, o Quilombo de Palmares e a Serra da Barriga ainda são temas que possuem um volume irrisório de estudos sobre a contribuição dos palmarinos na História que por muito tempo reproduziu uma epistemologia eurocêntrica que relega a história dos povos africanos e afro-brasileiros. A luta dos palmarinos não será esquecida, muito pelo contrário, será contada e relembrada como um exemplo de resistência ao sistema escravocrata e racista.


PALAVRAS CHAVE: Brasil-Colônia. Quilombo dos Palmares. Historiografia. Racismo.

INTRODUÇÃO

O sistema colonial que operou impositivamente na américa portuguesa tinha um único objetivo que era gerar lucro a metrópole. Esse sistema determinava também, o modo de produção e a mão de obra a ser explorada, nesse caso, o tráfico de escravos pelo Atlântico se mostrou mais rentável aos colonizadores (NOVAIS, 1969). Assim, segundo estimativas do Slave Voyages, cerca de 5 milhões de africanos foram escravizados e trazidos a força para a colônia, sendo responsáveis não só por produzir quase toda a riqueza do Brasil, mas, também por escrever sua história. Apesar da tentativa da política econômica mercantilista de reduzir e esvaziar os escravizados a condição de meras mercadorias, que legalmente poderiam ser vendidas e compradas, esses sempre buscaram travar lutas de resistência ao sistema geral de colonização europeia moderna, de modo a se firmarem como importantes sujeitos históricos. Porém, o fato da historiografia tradicional ter sido por muito tempo monopólio daqueles documentavam os grandes feitos dos povos vencedores sobre os vencidos, acarretou no que a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi chama de “o perigo de uma história única”, que não está de acordo com a realidade de todos os sujeitos, principalmente aqueles que foram historicamente oprimidos, como os negros e as mulheres. Essa história ajudou a construir vários dos mitos racistas que a sociedade brasileira ainda se vale, como o mito do “negro selvagem”, em consonância ao antigo escravizado africano que se rebelava contra a condição que lhe era imposta e o mito do “branco salvador”, herança da visão de que o colonizador europeu sempre levava a “ordem” e a “civilização” aos territórios conquistados. A falta de referências na grande mídia que pautem os negros escravizados como sujeitos plenos e dignos de humanidade, protagonistas de suas próprias histórias e grandes contribuintes para a formação social e política do Brasil, resultam em última instância na baixa autoestima de mulheres e homens negros que quase não conseguem se ver na História e quando conseguem é por meio de um ponto de vista que os degradam.


O PROTAGONISMO POLÍTICO DO QUILOMBO DOS PALMARES

É necessário “escovar a História a contra pelos” (BENJAMIN, 1940) a fim de buscar interpretações acerca dos diversos movimentos que os escravizados organizaram, apesar de serem deslegitimados historicamente, caindo na categoria de rebeliões criminosas, para que seus líderes sejam relembrados como heróis que lutaram por liberdade e sirvam de exemplos positivos para seus descendentes e a contemporaneidade como um todo, não o contrário. É o caso de Zumbi, “líder militar e religioso do quilombo dos Palmares, a maior comunidade de escravos fugidos e possivelmente a que sobreviveu por mais tempo na América portuguesa” (SCHWARCZ; STARLING, 2015).

Inicialmente, os relatos sobre o Quilombo de Palmares foram escritos por funcionários do Estado colonial, os quais participaram das expedições que tinham o objetivo de adentrar os quilombos e destruí-los. Mais tarde, alguns historiadores portugueses, baseando-se nesses relatos escreveram obras que descreviam minunciosamente as dimensões e toda a organização de Palmares, bem como o cotidiano dos palmarinos. Estes eram retratados como grandes inimigos dos governadores locais e da Coroa portuguesa, pois iam de encontro e abalavam todo o sistema colonial que fora arquitetado para manter a colônia como submissa. O fato de a República de palmares ter o seu próprio sistema de produção, que era interno, mas também dialogava e exportava para outras áreas, colocava em xeque o princípio do monopólio do comércio colonial (NOVAIS, 1969), onde absolutamente tudo que a colônia produz deve ser de posse da Empresa colonial. Os escravizados que antes eram explorados pelo Estado, passavam a trabalhar no quilombo para o qual haviam fugido respeitando outra lógica e outra autoridade que não à Coroa lusa.

Em torno de 1597 (SCHWARCZ; STARLING, 2015), fugidos de um engenho da antiga capitania de Pernambuco cerca de 40 negros da Guiné (MOURA, 1972) se deslocaram até a Serra da Barriga na Zona da Mata, na vila Santa Maria Madalena da Lagoa do Sul, atualmente compreendida como o estado de Alagoas, onde iriam fundar os primeiros mocambos de Palmares. Essa população originária chamava seu refúgio de Angola Janga (pequena Angola), uma vez que grande parte deles eram originários do Estado da Angola e tinham a intenção de recriar nesse espaço uma extensão de sua terra natal, reproduzindo seus costumes culturais. Com o passar do tempo, chegando a 20.000 habitantes, Palmares ficou conhecida como a maior Nação de africanos autogeridos fora de África da História. Como exímios agricultores e guerreiros que eram, os palmarinos vão garantir sua existência e subsistência por quase um século. É importante ressaltar que, Palmares não constituía um único quilombo, mas sim uma rede de vários quilombos com nomes que designavam seus líderes. A Cerca Real do Macaco era o maior e mais importante, pois se estabeleceu como núcleo político dessa rede onde atuava Ganga Zumba, o “Grande Chefe”. Ele era o presidente do Conselho de líderes quilombolas, instância para deliberação das estratégias políticas e de guerra de Palmares (SCHWARCZ; STARLING, 2015).

Foram 16 o número de grandes expedições militares enviadas pelo governo da capitania de Pernambuco para destruir Palmares. A primeira foi em 1644, comandada pelas tropas holandesas e a última em 1694, liderada por Domingos Jorge Velho e Bernardo Vieira de Melo, ambos enviados pelas autoridades portuguesas da colônia. É certo que Palmares era reconhecida como uma República, “espaço institucional e atuante de gestão pública, regulado pela política e funcionando em condições de relativa autonomia” (SCHWARCZ; STARLING, 2015) pelo próprio Estado Colonial. Isso deriva em grande parte das dimensões expansivas e da grande capacidade de organização dos quilombos, além da concorrência interna que eles geravam no comércio da colônia por venderem alimentos e artefatos que eles produziam para os habitantes das cidades circunvizinhas.

Após a expedição de 1677, que, enfim, conseguiu destruir os principais quilombos de Palmares e dizimou boa parte de sua população, inclusive a família de Ganga Zumba, que se viu obrigado a negociar um tratado de paz com o governador da capitania de Pernambuco. O acordo estipulava a rendição da República, a liberdade dos habitantes nascidos lá, em detrimento do retorno dos demais a condição de escravos. Os chefes militares não viram o pacto selado por Ganga Zumba com bons olhos, teriam, portanto, envenenado ele e entregado a direção de Palmares a Zumbi, chefe guerreiro que comandou a resistência dos palmarinos até 20 de novembro de 1695, data de sua execução (MOURA, 1972). O governador Caetano de Melo Menezes mandou expor a cabeça de Zumbi em praça pública, para provar o poder dos colonizadores e servir de lição moral aos escravizados: aquele seria o fim de quem demonstrasse algum tipo de resistência ao Sistema.

Atualmente, no Brasil se comemora o Dia da Consciência Negra na data de morte de Zumbi dos Palmares, fonte de inspiração para o Movimento Negro. Ocorre que, a data tem tratamento apenas simbólico e não é lembrada, muito menos é compreendida sua importância por toda a sociedade brasileira como uma oportunidade para se refletir sobre as marcas que a escravidão forjou, e que sustentam o racismo institucional contra a população negra até hoje, mesmo passado 131 anos de sua “abolição”. Em contrapartida, o dia 21 de abril é feriado nacional em memória a Tiradentes, reconhecido como herói nacional e mártir da Inconfidência Mineira. Apesar de Zumbi e Tiradentes terem participado de movimentos com motivações distintas, até por suas condições de vida serem totalmente opostas, eles tinham o mesmo objetivo, que era obter autonomia política perante o domínio dos colonizadores, e por serem vistos como líderes rebeldes tiveram o mesmo fim. Ambos foram executados, decapitados e tiveram suas cabeças expostas em praças públicas para servirem de lição para a população da américa portuguesa. Logo, apresenta-se de forma muito sintomática a diferença com que a Historiografia brasileira tratou ao longo dos anos as revoltas populares que aconteceram no período colonial, dando destaque apenas para algumas em detrimento de outras e quais os critérios que ela usa para eleger seus verdadeiros heróis. Tiradentes como um homem branco, livre e cristão foi redimido nas imagens dos livros didáticos de História, enquanto Zumbi, negro e escravizado foi por muito tempo subestimado. Além disso, é importante notar que a História “oficial” do Brasil acompanhou o desenvolvimento socioeconômico desigual do mesmo no que diz respeito às suas regiões, já que posteriormente ao período colonial a região central do país passou a concentrar a produção de recursos da máquina estatal em detrimento principalmente das regiões norte e nordeste que foram totalmente negligenciadas, inclusive no que diz respeito às suas histórias. Fica claro que ainda há muito preconceito e racismo imbuído na História. Sendo necessário e de suma importância a instituição da Lei Nº 10.639, outorgada em 2003, pelo então presidente da república Luiz Inácio Lula da Silva, que torna obrigatório “o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil” (Diário Oficial da União, 9 jan. 2003), como política pública de reparação histórica.

Para além, a Serra da Barriga, território que abrigou a República de Palmares é reconhecida como Patrimônio Cultural Brasileiro inscrito no Livro do Tombo Histórico e no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, desde 1986 e recebeu o título de Patrimônio Cultural do Mercosul em maio de 2017, que revela como sua justificativa no Dossiê de Candidatura fomentado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

Foi a Fundação Cultural Palmares (FCP), instituída em 1988 pelo Governo Federal, responsável pela construção do Parque Memorial Quilombo dos Palmares na Serra da Barriga. Para além, “o § 4º do art. 3º do Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, reserva à Fundação Cultural Palmares a competência pela emissão de certidão às comunidades quilombolas e sua inscrição em cadastro geral.” (Diário Oficial da União, 20 nov. 2003). A Fundação conta com cinco representações regionais, uma delas no Maranhão, localizada no Centro Histórico de São Luís.

Dessa forma, temos exemplos de estratégias incentivadas em grande parte pelos Movimentos Negros [2]e Movimentos Quilombolas para que não se deixe esquecer a importância da luta de Zumbi dos Palmares e dos demais 20.000 palmarinos que combateram uma estrutura colonial inteira por um século. Apesar disso e da Historiografia tradicional brasileira ter ajudado a criar, por exemplo, o mito da democracia racial [3]e a ideia de que o país era o paraíso das três raças, o que mascarava toda a estrutura hierárquica e violenta do racismo, o Brasil segue sendo o país onde morre um jovem negro a cada 23 minutos, segundo o Mapa da Violência da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO), de 2016. São 63 mortes por dia, totalizando cerca de 23.000 mortes por ano.

Muita coisa mudou radicalmente do período colonial para a contemporaneidade, outras coisas apenas se sofisticaram, o racismo é uma delas. Se antes criavam-se justificativas baseadas na cor da pele das pessoas para escravizá-las, quem herdou sua raça, herdou também seu histórico e transformou-se em uma massa marginalizada socialmente que é minoria em aplicabilidade de direitos hoje em dia, o que resulta em um novo de tipo de genocídio tão cruel quanto o do sistema escravocrata.


CONCLUSÃO

Diante do que foi exposto, cabe a História procurar reparar os danos causados pela colonização que escravizou e trouxe a força 5 milhões de africanos para o Brasil. Estes foram arrancados de sua terra natal, do seio de suas famílias, batizados em uma fé cristã que não a deles, obrigados a cultuá-la e a esquecer seu passado, em um processo de epistemicídio cruel que os impediu de seguir o fluxo natural de reprodução de suas próprias histórias. Ao invés disso, os africanos escravizados foram reduzidos a condição de mercadorias que tinham um preço e poderiam receber um trato que não fosse humano, passar por torturas e execuções sem precedentes. Tendo sofrido atentados contra suas vidas, os escravizados procuraram se defender de diversas formas, seja matando seus senhores, seja fugindo e construindo quilombos. Nesses quilombos, os africanos tinham a oportunidade de resgatarem suas dignidades e de viver livremente de acordo com sua cultura nativa. Pois como apontou SCHWARTZ (1988): “a aculturação era muitas vezes pouco consistente ou incompleta e que as ideias de resistência com frequência jaziam bem próximas à superfície da vida”. O Quilombo dos Palmares é o exemplar mais emblemático da história dos movimentos protagonizados pelos escravizados na América Portuguesa. Todavia, o volume de estudos sobre a contribuição dos africanos, afro-brasileiros e quilombolas para a formação social-cultural-política do Brasil ainda é irrisória e tem um longo caminho a ser traçado. Tecer reflexões acerca do não lugar que a historiografia brasileira por muito tempo reservou para esses sujeitos, é pensar consequentemente na operatividade do racismo no Brasil.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BRASIL. Lei Nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências. Diário Oficial da União, Seção 1, 2003, Página 1. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm>. Acesso em: 20 jun. 2019.

BRASIL. Lei Nº 4.887, de 20 de novembro de 2003. Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Diário Oficial da União. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4887.htm>. Acesso em: 20 jun. 2019.

INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL – IPHAN. Dossiê de Candidatura da Serra da Barriga, Parte Mais Alcantilada - Quilombo dos Palmares a Patrimônio Cultural do MERCOSUL. Brasília, 2017. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Dossie_serra-da-barriga.pdf>. Acesso em: 22 jun. 2019.

NASCIMENTO, Abdias do. O Quilombismo. Rio de Janeiro: Editora Vozes Ltda., 1980, pp. 42-68. Disponível em: <https://estudosetnicosraciaisufabc.files.wordpress.com/2016/02/09-b-nascimento-o-quilombismo-pag-1-280-1.pdf>. Acesso em: 15 maio. 2019.

NOVAIS, Fernado A. O Brasil nos quadros do Antigo Sistema Colonial. São Paulo: DIFEL, 1969, pp. 47-62.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. Revista do PPGAV. Rio de Janeiro. N. 32. dezembro, 2016. Disponível em: <https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/8993>. Acesso em: 17 jun. 2019.

MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala. São Paulo: Editora Ciências Humanas Ltda., 1981, pp. 183-197. Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4584886/mod_resource/content/2/14%20-%20Rebeli%C3%B5es-da-Senzala-Clovis-Moura_Completo.pdf>. Acesso em: 19 jun. 2019

SCHWARCZ, Lilia; STARLING, Heloisa. Brasil: uma biografia. 1ª. Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.


SITES DA INTERNET

FUNDAÇÃO-CULTURAL-PALMARES. Apresentação. Disponível em <http://www.palmares.gov.br/?page_id=95>. Acesso em: 21 jun. 2019.

SLAVE-VOYAGES. Estimates. Disponível em: <https://www.slavevoyages.org/assessment/estimates>. Acesso em: 18 jun. 2019.

FACULDADE LATINO-AMERICANA DE CIÊNCIAS SOCIAIS. Mapa da Violência. Disponível em: <http://www.mapadaviolencia.org.br/>. Acesso em 22 jun. 2019.

[1] Graduanda em Licenciatura Plena de História pela Universidade Federal do Maranhão. E-mail para contato: louysess@outlook.com. [2] O Movimento Negro Unificado (MNU), fundado em 1978, é exemplo de uma organização pioneira na luta contra a discriminação racial no país e pela garantia de direitos das populações negras. [3] A obra de Gilberto Freyre é uma expoente no processo de criação do mito da democracia racial no Brasil. Ver FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. ‎Editora: Maia & Schmidt. 1933.

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